A W Tozer (1897-1963)
[Este artigo foi
publicado pela primeira vez no "The Alliance Witness" a 15 de maio
de1963, apenas dois dias após a morte do Dr. Tozer. Ele foi, de certa forma, o
seu discurso de despedida, pois expressava a preocupação que ia em seu íntimo.]
Este é o fardo em meu
coração e embora não reivindique para mim mesmo qualquer inspiração especial,
sinto porém que este é também o fardo do Espírito. Se conheço meu próprio
coração é apenas o amor que me leva a escrever isto. O que deixo aqui por
escrito não é o fermento ácido de alguém agitado por contendas com companheiros
cristãos. Não houve conflitos. Não fui abusado, maltratado ou atacado por
ninguém. Essas observações também não são fruto de experiências desagradáveis
que tenha lido em minha associação com outros. Minha convivência com a igreja
que frequento assim como cristãos de outras denominações sempre foram
amigáveis, corteses e satisfatórias. Minha tristeza resulta simplesmente de uma
condição que acredito achar-se quase universalmente presente nas igrejas. Penso
que devo também reconhecer que eu também me encontro bastante envolvido na
situação que deploro aqui. Como Esdras em sua poderosa oração intercessória
incluiu-se entre os malfeitores, faço o mesmo. "Meu Deus! Estou confuso e
envergonhado, para levantar a ti a minha face, meu Deus: porque as nossas iniquidades se multiplicaram sobre a nossa cabeça, e a nossa culpa cresceu até os
céus" (Ed 9:13). Qualquer crítica feita aqui a outros deve voltar-se
contra mim. Eu também sou culpado. Isto está sendo escrito na esperança de que
possamos todos voltar-nos para o Senhor nosso Deus e não pecar mais contra Ele.
Permita que declare a causa do meu fardo:
Jesus Cristo não tem
hoje quase nenhuma autoridade entre os grupos que se chamam pelo seu nome.
Não estou me referindo
aqui aos católico-romanos, nem aos liberais, nem sequer aos cultos
quase-cristãos. Refiro-me às igrejas protestantes em geral e incluo aquelas que
protestam mais alto que não se acham num declive espiritual, afastando-se de
nosso Senhor e seus apóstolos, a saber, os "evangélicos". Trata-se de
uma doutrina básica do Novo Testamento que após a sua ressurreição o
Homem Jesus foi declarado por Deus como sendo Senhor e Cristo, e que Ele
foi investido pelo Pai com absoluta soberania sobre a igreja que é o seu Corpo.
Ele possui toda a autoridade no céu e na terra. Na hora oportuna Ele irá
exercê-la plenamente, mas durante este período na história Ele permite que esta
autoridade seja desafiada ou ignorada. E justamente agora ela está sendo
desafiada pelo mundo e ignorada pela igreja. A posição atual de Cristo nas igrejas
evangélicas pode ser comparada à de um rei numa monarquia limitada,
constitucional. O rei (algumas vezes despersonalizado pelo termo "a
Coroa") não passa em tal país de um símbolo agradável de unidade e
lealdade, tal como uma bandeira ou hino nacional. Ele é louvado, festejado e
sustentado, mas sua autoridade como rei é insignificante. De maneira nominal
lidera a todos, mas nas horas de crise alguém mais toma as decisões. Nas
ocasiões solenes aparece em suas roupagens reais a fim de pronunciar o discurso
insípido, incolor, colocado em seus lábios pelos verdadeiros senhores do país.
Toda a situação pode não passar de um faz-de-conta inócuo, mas tem suas raízes
no passado e ninguém quer desistir dele. Entre as igrejas evangélicas, Cristo
não passa hoje de um Simples símbolo, muito amado."Todos Louvem o Poder do
Nome de Jesus" é o hino nacional da igreja e a cruz sua bandeira oficial.
Mas nos serviços semanais da igreja e na conduta diária de seus membros, alguém
mais, e não Cristo, toma as decisões. Nas ocasiões adequadas, permite-se que
Cristo diga: "Vinde a mim, todos vós que estais cansados e
sobrecarregados" ou "Não se turbe o vosso coração", mas no
momento em que termina o sermão alguém toma a dianteira. Os que têm autoridade
decidem quais devem ser os padrões morais da igreja, assim como todos os
objetivos e métodos empregados para alcançá-los. Devido a uma organização longa
e meticulosa, o jovem pastor recém-saído do seminário exerce hoje muitas vezes
mais autoridade sobre a igreja do que Jesus Cristo. Cristo não só tem agora
menos ou nenhuma autoridade, Ele também está perdendo cada vez mais a sua
influência. Não diria que ela é inexistente, mas sim que é pequena e está
diminuindo. Uma comparação justa seria com a influência de Abraão Lincoln sobre
o povo norte-americano. O honesto Abe continua sendo o ídolo do país. Seu rosto
bondoso, austero, tão comum que chega a ser belo, aparece em toda parte. É
fácil sentir os olhos cheios de lágrimas quando pensamos nele. As crianças
crescem aprendendo histórias a respeito do seu amor, honestidade e
humildade. Mas depois de termos controlado nossas emoções, o que nos resta? Nada
mais que um bom exemplo, o qual, à medida que retrocede no passado se torna
cada vez mais irreal e exerce uma influência cada vez menor. Qualquer patife
está disposto a vestir o casaco de Lincoln, preto e comprido. A luz fria dos
fatos políticos nos Estados Unidos, o constante apelo a Lincoln por parte dos
políticos não passa de uma piada cínica.
A soberania de Jesus não
está de todo esquecida entre os cristãos. mas foi relegada ao hinário, onde
toda responsabilidade em relação a ela pode ser confortavelmente descarregada
num brilho de agradável emoção religiosa. No caso de ser ensinada como uma
teoria na sala de aula, ela é raramente aplicada na vida diária. A ideia de que
o Homem Cristo Jesus possui autoridade final e absoluta sobre toda a igreja e
todos os seus membros em cada detalhe de suas vidas é simplesmente posta de
lado hoje como não sendo verdadeira pelos cristãos evangélicos de modo geral. O
que fazemos é o seguinte: aceitamos o cristianismo de nosso grupo como sendo
idêntico ao de Cristo e seus apóstolos. As crenças, práticas, ética e
atividades de nosso grupo são equacionadas com o cristianismo do Novo
Testamento. O que quer que o grupo pense diga ou faça é bíblico, sem que façam
perguntas. Presume-se que tudo que o Senhor nos pede é para ocupar-nos com
todas as atividades do grupo; e, agindo assim, estamos cumprindo os mandamentos
de Cristo. No sentido de evitar a dura necessidade de obedecer ou rejeitar as
claras instruções do Senhor no Novo Testamento, nos refugiamos na interpretação
liberal das mesmas. A casuística não e propriedade exclusiva dos teólogos
católico-romanos. Os evangélicos também sabem perfeitamente fugir das arestas
aguçadas da obediência por meio de explicações sutis e complexas. Estas são
feitas sob medida para a carne. Eles desculpam a desobediência, acomodam a
carnalidade e neutralizam as palavras de Cristo. A essência de tudo é
simplesmente que Cristo não poderia ter pretendido dizer o que disse. Seus
ensinos, mesmo em teoria, são aceitos apenas depois de terem sido diluídos pela
interpretação. Cristo é porém consultado por um número cada vez maior de
pessoas com "problemas" e buscado pelos que desejam paz de mente. Ele
é largamente recomendado como uma espécie de psiquiatra espiritual com poderes
notáveis para esclarecer os que estão confusos. Jesus é capaz de livrá-los de
seus complexos de culpa e ajudá-los a evitar graves traumas psíquicos através
de um ajuste suave e fácil à sociedade e a seu próprio id.
Este Cristo estranho não
tem naturalmente qualquer ligação com o Cristo do Novo Testamento. O verdadeiro
Cristo é também Senhor, mas este Cristo tolerante não passa de um servo do povo
um pouco mais graduado. Suponho, todavia, que devo oferecer alguma prova
concreta para apoiar minha acusação de que Cristo tem pouca ou nenhuma
autoridade hoje entre as igrejas. Vou fazer então algumas perguntas e a
resposta às mesmas será a evidência. Qual a diretoria da igreja que consulta as
palavras do Senhor para decidir os assuntos em discussão? Quem estiver lendo
isto e que já tenha feito parte de um quadro diretor, procure lembrar-se das
vezes em que qualquer membro lesse as Escrituras para estabelecer um ponto, ou
que qualquer presidente da reunião sugerisse aos irmãos que procurassem as
instruções que o Senhor poderia dar-lhes num determinado assunto. As reuniões
administrativas são geralmente iniciadas com uma oração formal; depois disso o
Cabeça da Igreja fica respeitosamente em silêncio enquanto os verdadeiros
governantes passam a agir. Quem quiser negar isto apresente evidência em
contrário. Ficarei muito contente se isso acontecer. Que comitê da Escola
Dominica pesquisa a Escritura pedindo orientação? Não é verdade que os membros
invariavelmente julgam que sabem tudo o que precisam fazer e que o único
problema é descobrir meios eficazes para pôr seu plano em prática? Planos,
regras, "operações" e novas técnicas metodológicas absorvem todo o
seu tempo e atenção. A oração antes da reunião é no sentido de pedir ajuda
divina para seus planos. A ideia de que o Senhor possa ter algumas instruções
para dar-lhes nem sequer lhes cruza a mente. Quem se lembra de um presidente de
assembléia ter levado a Bíblia para a mesa com ele a fim de realmente usá-la?
Minutas, regulamentos, regras da ordem, etc., sim. Os mandamentos sagrados do
Senhor, não. Existe uma absoluta diferença entre o período devocional e a
sessão de negócios. O primeiro não tem relação alguma com o segundo. Qual a
entidade missionária no estrangeiro que realmente busca seguir a orientação do
Senhor como provida pela sua Palavra e seu Espírito? Todas pensam que fazem
isso, mas na verdade apenas presumem que seus objetivos são bíblicos e pedem a
seguir auxílio para alcançá-los. Podem até mesmo orar a noite inteira a Deus, a
fim de que seus empreendimentos tenham êxito, mas Cristo é desejado como
ajudante e não como Senhor. Os recursos humanos são projetados para alcançar
fins tidos como divinos, A seguir estes se transformam em regras fixas e daí
por diante o Senhor não tem sequer o direito de votar a favor ou contra. Na
organização do culto público onde se acha a autoridade de Cristo? A verdade é
que o Senhor raramente controla um serviço hoje em dia, e sua influência é bem
insignificante. Cantamos a respeito dEle e pregamos sobre Ele, mas não
permitimos que Ele interfira; adoramos à nossa moda, e esta deve estar certa
porque sempre fizemos isso. como as outras igrejas em nosso grupo. Qual o
cristão que vai diretamente ao Sermão do Monte ou outra passagem do Novo
Testamento para obter uma resposta com autoridade ao enfrentar um problema
moral? Quem aceita as palavras de Cristo como finais com relação à coleta,
controle da natalidade, criação dos filhos, hábitos pessoais, dízimo,
diversões, vendas, compras, e outros assuntos importantes? Qual a escola de
teologia, a partir do instituto bíblico mais humilde, que continuaria a
funcionar se fizesse Cristo Senhor de todos os seus regulamentos? Pode ser que
haja alguma, e oro nesse sentido, mas creio estar certo quando digo que a
maioria das escolas a fim de poderem manter-se são forçadas a adotar
procedimentos que não encontram justificativa na Bíblia que professam ensinar.
Vemo-nos então diante de uma estranha anomalia: a autoridade de Cristo é
ignorada a fim de manter uma entidade que ensina entre outras coisas a
autoridade de Cristo. As causas que produziram o declínio da autoridade do
Senhor são várias. Vou citar apenas duas. Uma delas é o poder do costume,
precedente e tradição nos grupos religiosos mais antigos. Como a lei da
gravitação, essas coisas afetam cada elemento da prática religiosa dentro do
grupo, exercendo uma pressão firme e constante em uma direção. Essa
direção como é natural, é a da conformidade com o estado de coisas, o
"status quo". O costume e não Cristo é senhor nesta situação. E a
mesma condição foi transmitida (talvez num grau um pouco menor) a outras
igrejas, tais como os tabernáculos, as "holiness churches". as
igrejas pentecostais e fundamentalistas e as muitas igrejas independentes e
não-denominacionais que se vêem por toda parte. A segunda causa é o
reavivamento do intelectualismo entre os "evangelicais". Se posso
julgar corretamente a situação, não se trata tanto de sede de aprender como do
desejo de adquirir uma reputação de intelectual. Por causa disso, homens bons
que deveriam ter-se apercebido da situação, estão sendo usados para colaborar
com o inimigo. Vou explicar. Nossa fé evangélica (que acredito ser a verdadeira
fé possuída por Cristo e seus apóstolos) está sendo hoje atacada de muitas
direções diferentes. No mundo ocidental o inimigo repudiou a violência, ele não
vem a nós com a espada e o porrete; vem agora sorrindo, trazendo presentes.
Eleva os olhos para o céu e jura que crê também na fé possuída por nossos pais,
mas seu verdadeiro propósito é destruir essa fé, ou pelo menos modificá-la até
o ponto de não mais conter o elemento sobrenatural que antes continha. Ele vem
em nome da filosofia, psicologia ou antropologia, e com uma atitude mansa e
razoável insiste em que repensemos a nossa posição histórica, que sejamos menos
rígidos, mais tolerantes, mais compreensivos. Ele fala no jargão sagrado das
escolas e muitos de nossos evangélicos semi-educados correm para render-lhe
culto. Ele atira diplomas acadêmicos aos filhos dos profetas, como Rockefeller
fazia com os filhos dos camponeses. Os "evangélicos" que foram
acusados, mais ou menos justamente, de não possuírem uma escolaridade de nível
superior, agora procuram agarrar esses símbolos de posição com os olhos
brilhando, e quando os obtêm mal conseguem crer na sua boa sorte. Para o
verdadeiro cristão, o teste supremo de tudo quanto se refere à religião é o
lugar que o Senhor ocupa. Ele é Senhor ou símbolo? Acha-se no controle do
projeto ou não passa de um simples ajudante? Decide as coisas ou apenas
colabora na execução dos planos de outros? Todas as atividades religiosas,
desde o ato mais simples de um único cristão até as obras cansativas e
dispendiosas de toda uma denominação, podem ser testadas de acordo com a
resposta dada à pergunta: Jesus Cristo é Senhor neste ato? O fato de nossas
obras provarem ser de madeira, palha e mato em lugar de ouro, prata e pedras
preciosas naquele grande dia, vai depender da resposta certa a essa pergunta. Que
fazer então? Cada um de nós deve decidir, e existem três escolhas possíveis.
Uma delas é indignar-se e acusar-me de uma atitude irresponsável. Outra é
concordar de maneira geral com o que escrevi, mas consolar-se com a ideia de
que existem exceções e estamos entre estas. A terceira é prostrar-se
humildemente e confessar que entristecemos o Espírito e desonramos o Senhor,
deixando de dar-lhe a posição que o Pai lhe conferiu como Cabeça e Senhor da
Igreja. A primeira e a segunda não farão senão confirmar o erro. Mas a
terceira, se levada até a sua execução final, poderá remover a maldição. A
decisão é nossa.
Colaborou: Alexandre rodrigues, por e-mail
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